O GATO DESCE A ESCADA
"Não tem
nome nenhum. Não sabe que é gato, quadrúpede, mamífero, de pêlo
preto. Não sabe que está num jardim, nem de que casa, em que rua,
no mundo, num planeta, entre planetas, lua, sol, estrelas, nebulosas,
cometas – no meio do universo.
O gato desce a escada.
Solenemente. Como se soubesse tudo isso e muito mais.
O gato desce a escada.
Silenciosamente. Como se não existisse.
Pedras, árvores, brisa da tarde,
pingo d’água da fonte no muro, passarinhos na ponta dos telhados,
nada disso o distrai.
Botânica, Zoologia,
Mineralogia, nada disso tem nome, para ele, nem conteúdo, nem
separação.
O gato desce a escada.
Ninguém o chamou. Não tem
família. Não tem casa. Não parece ter fome nem sede: é luzidio,
nédio, grande e sereno.
Mas desce a escada.
Lá fora, pode ser ferido pela
pedrada dos meninos maus. Pode ser atropelado por uma roda qualquer,
dos milhares de rodas que sobem e descem pelos caminhos. Pode ser
agarrado, esfolado, e virar tamborim, nas festas de Carnaval que
estão preparando nos morros. E, se algum feiticeiro o avistar, pode
ser cozido numa panela nova, que é a fórmula de tornar os homens
invisíveis.
Humanidade, Vida, Morte, Dor,
Alma, Deus, – ele caminha solitário entre as palavras e as idéias.
Ele desce a escada.
Quando escurecer, seus olhos
serão fosforescentes. Mas ele nunca viu seus olhos. Atrás dele vão
a sua sombra e o meu pensamento. Cada qual mais precário.
O gato desce a escada."
- Carlina Tare vs Cecília Meireles
|