Linhas e Fotografias

(Imagem : Martim Whatson)
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  “Annemarie sentou-se à minha mesa. Vi logo o tamanho da sua solidão: tinha o tamanho do mundo. Ela era a criatura mais só do mundo. E a sua história apareceu - simples, tenebrosa - entre as nossas duas cervejas. Todas as histórias pessoais são simples e tenebrosas. Não me comovi. Comovido já eu estava: com as coisas, comigo, com a chuva sobre a cidade. Talvez houvesse uma irónica alegoria em nós os dois ali sentados diante dos belos copos frios, compreendendo ambos tão facilmente o que nos acontecia e iria acontecer que não tínhamos pressa. Poderíamos morrer ali mesmo. Esperávamos.”

- Neal Slavin vs Helberto Helder

Enquanto a maioria dos meninos desenhavam a bruxa com o tradicional chapéu, vassoura, luas e vestido preto − muitos deles exibindo desenhos ricos em pormenores e sofisticados −, Kelson, o miúdo que tem a pele cor do chocolate e nos olhos o brilho das estrelas, transformou alguns aspetos do estereotipo em poucos minutos e de acordo com as qualidades vivas do momento: deu à bruxa um cabelo cor-de-rosa, vestiu-a de noiva (ele é que disse), no pensamento colocou-lhe uma bailarina e aproveitou para declarar o seu amor pela professora e pela rapariga que por lá andava a tirar fotografias a tudo e a todos. Ficou como se pode ver, não muito perfeito mas espontâneo - próprio daqueles para quem a vida ainda se come quente e não precisa de receitas.


Nos salões da sociedade corriam rumores que Milton trocara a sua mulher por outra do mesmo género: ambas cabeleireiras, esbeltas, da mesma idade e mestiças. Carol, a ajudante da primeira mulher, talvez alheia à verdadeira causa, chamou a a isto falta de originalidade. A verdade é que as raparigas pareciam um só rosto. Enquanto isto, Nádia, uma cliente habitual, procurava o grande amor. E tudo o que a levava ali era parte do percurso feito com uma espécie de cintilância febril.

- Do filme Caramelo/ Nadie Labaki vs Verónica Louise



A porta do elevador do Centro Comercial Colombo abre-se. Movimento repetido, na ordem do quotidiano. Por ela irrompe uma mulher mestiça - radiosa ( «será aqui o paraíso? ») . Levava um recém nascido num berço, a pérola preciosa que lhe dava um sorriso contagiante. Atrás dela, ainda no elevador, permanecia outra mulher em cuja expressão ficou um rasto sumido dessa espécie de júbilo pela vida.
Um miúdo, sentado num muro baixo, à beira da estrada para onde não olha — sentado como que eternamente, sentado para estar sentado, sem tergiversar:

« Sentado tranquilamente,sem fazer nada.
Chega a primavera e a erva cresce por si.»

- Roland Barthes









" O cego a cantar em russo na Ponte Carlos, sobre Vladava. A bela rapariga de olhos tristes a tocar guitarra espanhola. A senhora checa a entoar uma área de ópera na rua nocturna. Quase ninguém neles repara: a seus pés escasseiam as moedas. E eram eles o coração de Praga, a cidade aquímica, na noite do mundo. Pela sua voz Deus cantou entre os homens surdos, que atónitos iam às suas vidas, cheios de pressa e de nada. ( Praga, Maio, 2007)" 

- Robert Frank vs Paulo Borges


1.

«Um grande debate, inédito e histórico.» Luzes, sublinhados e altifalantes. No final fica a sensação de uma mão cheia de nada.



2.

Os comentários andam na boca de muita gente mas pouco acrescentam (“ mastiga, deita fora, vai embora” ). Aponta-se com o dedo, enchem-se as fotografias de dedadas;olha-se de cima o tracejado do caminho, citam-se nomes e números. Pressiste o drama individual da história única.



3.

« Não há nada a ganhar nem perder» . Só há ganhar e perder. E a vitória é tão fixe!

[…]
“E fica a Voz, uma voz dorida que sai das entranhas como a flama de um lume que a tudo consome. Paixão pura, gratuita, sem outro fim senão o de arder, tanto maior quanto mais se oferta : "dom sagrado".
Dos becos e vielas do coração obscuro de Lisboa ou dos salões da aristocracia castiça uma mesma Voz se ergue, quando o crepúsculo reabsorve na treva as femininas formas da cidade branca e rosa. O vento, que outrora engravidava as éguas no Monte Santo, vem agora dedilhar as cordas de uma guitarra portuguesa. O Tejo empresta a frescura e o ritmo das suas vagas. E as ninfas, sereias e tritões tomam forma humana, vestem-se de negro, à luz da Lua, para ficarem mais nús, mais íntimos à Noite absoluta. Então as Musas, as camonianas Musas, sopram : a celebração começa.”
[…]
- Paulo Borges
“Entra pela janela aberta o rumor da avenida. E do parque entre os prédios, um músico ambulante toca o seu saxofone. É um som volumoso, oco, tem nos finais vibrações melodiosas. É uma música nostálgica, de uma lentidão genesíaca. E a toada sobe por entre o rumor do tráfego. E paira ao alto como uma estrela.”

-Vergílio Ferreira
Verão. Lá fora o esfalto queima . A luz agride. Vidas plurais amontouam-se no Aeroporto de Lisboa. Torna-se difícil isolar um gesto. A rapariga branca , com uma claridade terna, abraça o seu grande amor, um rapaz mestiço com um chapéu de palha castanho e rastas que lhe dão por baixo dos ombros . Ficou envolvido naqueles braços mesmo antes de pousar as malas. Sorria cheio de presença.
O poeta Teixeira de Pascoes encontrou um dia uma senhora no Castelo de S. Jorge meio especada e perguntou-lhe o que estava ali a fazer. Ao que ela respondeu: “Estou aqui”. E ele , sem perceber nada, perguntou se aquilo era resposta. Ao que ela retorquiu: “ e o senhor acha que é pouco eu estar aqui!?”. Pascoais escreve que isto foi uma revelação, maior do que tudo o que encontrou na obra de Platão e outros.

(Era isto que relatava Paulo Borges numa aula.)

É uma flor. Não uma flor de jardim que alegre quem a cultiva, ou mesmo de um caminho perdido onde a veja alguém que passa. É uma flor de um campo bravio e onde pôs gosto em morar. O mais provável era ninguém a ver como muitas outras que ninguém vê. Terá vivido com algum insecto? Leva-lhe a aragem o pólen para outra flor que o espera? Mas é possível, simplesmente possível, que nasça e morra sem mais. Olhei-a eu por acaso – porque é que nasceste? Mas não lho perguntei porque toda a pergunta era absurda. Uma flor. Nascida e morta sem razão, nem sequer a razão de alguém a olhar. Flor gratuita e todo o seu mistério sem mistério nela. E toda a filosofia da vida aí. “


Vergílio Ferreira

O ESPANTALHO

"Certo dia disse a um espantalho : - Deves estar cansado de ficar quieto no meio deste campo deserto .

Ele respondeu - me : - O prazer de espantar é profundo e grande , nunca me cansa.

É verdade , disse eu , também já conheci esse prazer.

Ele respondeu : - Só podem conhecer esse prazer os que estão cheios de palha .

Afastei - me dele sem saber se a sua resposta era de elogio ou de troça ."


- khalil Gibran
"Vou contar uma história. Havia uma rapariga que era maior de um lado que do outro. Cortaram-lhe um bocado do lado maior: foi de mais. Ficou maior do lado que era dantes mais pequeno. Cortaram. Ficou de novo maior do lado que era primitivamente maior. Tornaram a cortar. Foram cortando e cortando. O objectivo era este: criar um ser normal. Não conseguiam. A rapariga acabou por desaparecer, de tão cortada nos dois lados. Só algumas pessoas compreenderam."

- Herberto Helder