"1-Fevereiro
(sábado). Fiz cinquenta anos há dias. Como é óbvio, não
acredito. Mas enfim, é a opinião do Registo Civil. Acabou-se, fiz
cinquenta e três. É aliás uma idade inverosímil, a minha, desde
os cinquenta. A «vergonha» da idade ( que não tenho) deve vir daí.
E então lembrei-me : e se eu tentasse uma vez mais o registo diário
do que me foi afectando? Admiro os que conseguiram, desde a
juventude. Nunca fui capaz. Creio que por pudor, digamos, falta de
coragem. Um romance é um biombo: a gente despe-se por detrás. Isto
não. Mesmo que não falemos de nós ( é-me difícil falar
de mim) . Aliás como os outros,
desconheço-me. Talvez, também porque me evito. A verdade é que,
quando me encontro bem pela frente, reconheço-me intragável. Mas
enfim as virtudes são também desgostantes. De resto,
sou pouco abonado. Segundo a Regina, as virtudes que tenho têm mesmo
raízes viciosas: tolerância por fraqueza, interesse pela arte, por
vaidade e coisas assim. Não digo que aconteça isso com todas as
virtudes; mas com algumas deve ser verdade. Chega. O meu «diário»
está nas centenas de cartas aos amigos. Lembro as ao Lima de
Freitas, L. Albuquerque, Costa Marques, Mário Sacramento, Eduardo
Lourenço, alguns mais. Em todo o caso, essas mesmas, falsas. Excepto
talvez quando sobre questões «sérias». E ainda aí há quase
sempre um disfarce ou o tempero do gracejo. Serei agora capaz? Tento.
Seguro-me ao argumento de que me dá prazer ler os registos dos
outros. Leem-se sempre com curiosidade. Um motivo para insistir -
satisfazer a curiosidade dos outros. Mas terei eu «outros?»"
- Vergílio
Ferreira